Imagine o cenário: traficantes em batalha de rua, mundo se acabando ao redor, para proteger e ampliar seus pontos de distribuição de... som. Ou então, numa cidade do interior, a “difusora”, aqueles alto-falantes espalhados pelos postes do lugar, transmitindo um beat que leva a galera a níveis de energia nunca dantes navegados por ali. Como conseqüência, os liberados pela nova moda terão criado situações que levarão o padre, o delegado e o juiz a reconsiderar os hábitos e relacionamentos do povo de lá. Os dois casos são extremos e têm pouco a ver com a promessa de i-doser: beats que poderiam alterar significativamente o comportamento do cérebro, como se você estivesse drogado.Mas e se a coisa funcionasse mesmo, e em larga escala? Veja o que diz, no site da empresa (em “experiences”), um certo Leo Jampolsky, depois de “ouvir” a erva maldita: “eu me senti sob os efeitos da descrição (do som, promovido como marijuana); meu corpo ficou leve e eu relaxei, até o ponto em que comecei a gargalhar sem nenhuma razão”. Uau. Mas i-doser, a companhia, não está fazendo nada de novo. Em particular, o processo sonoro usado para estimular o cérebro, conhecido com binaural beats, foi descoberto há mais de cento e cinqüenta anos por Heinrich Dove e redescoberto em 1973 por Gerald Oster, como parte de estudos para diagnóstico, por exemplo, do mal de Parkinson. Quem sofre da doença normalmente não consegue perceber os beats, o que melhora significativamente com o tratamento. E Oster também determinou que os beats poderiam ser usados para identificar deficiências auditivas.A idéia por trás de binaural beats é usar duas freqüências sonoras próximas uma da outra para criar estímulos auditivos correspondentes aos modos de “vibração” naturais do cérebro, normalmente entre 0.5Hz (um ciclo a cada dois segundos, correspondente ao sono profundo, modo delta) e 40Hz e acima (quarenta ciclos por segundo, alerta total, modos beta e gama). O mecanismo é conhecido desde (entre outras culturas) a américa pré-colombiana: os incas usavam fontes sonoras para criar beats que serviam de trilha para suas cerimônias. Hoje se sabe que os beats podem ser usados para induzir estados mentais bastante estudados como o de meditação, que surge entre 8 e 13Hz. Mas a controvérsia em torno do tema, apesar de uma base científica cada vez mais sólida, é muito maior do que o auê gerado por i-doser e sua promessa de drogas sonoras.Já discutimos nesta coluna outros processos de mudança de estado cerebral, como as diversas tentativas de controlar o sono, usando inclusive polarização elétrica do cérebro. Os beats, como as drogas inteligentes contra o sono e o uso de dispositivos eletrônicos para induzir estados cerebrais, são parte das nossas tentativas de programar a parte mais complexa do nosso corpo, justamente a que raciocina e reflete. Tais processos de modificação, ou de ampliação da capacidade humana, fazem parte de uma tendência muito antiga de modificação corporal (ou body mod), onde o corpo é tratado como uma plataforma (programável) à qual se quer adicionar, suprimir ou ampliar funcionalidades naturais. Pode ser algo muito simples, como fez Quinn Norton ao implantar um magneto no dedo indicador e passar a “sentir” campos magnéticos. Ou muito complexo, como o caso de Steven Gulie, que implantou um “marcapasso” para tentar controlar o avanço do mal de Parkinson usando estimulação profunda do cérebro numa cirurgia que custou mais de meio milhão de reais (coberto pelo plano de saúde dele). O caso de Gulie, descrito pelo próprio, é uma excelente leitura para quem tiver algum interesse no assunto.Voltando aos drogáudios, e obviamente a seu próprio risco (e sem que esta coluna esteja estimulando qualquer tipo de uso de drogas) o leitor pode pegar grátis o Brain Wave Generator e, neste outro link, algo que eles chamam candidamente de LSD e está na rede para qualquer um experimentar. A coluna não tentou. Para um barato mais leve, que tal este aqui para surfar? E BWGen não é o único software grátis que você pode pegar para ouvir, ou sentir, o que acontece: GnAural é um projeto de software aberto onde você pode entender como a coisa funciona, se sabe programar, e contribuir para o desenvolvimento, se estiver afim... o que aumenta suas possibilidades criativas muito além da simples programação do gerador de beats.De resto, você não precisa de software para ouvir binaural beats. Há quem combine música com beats, tornando a audição mais interessante do ponto de vista estético. Finalmente, pode ser que, usando o material da i-doser ou de qualquer outra fonte ou promessa, você não vá viajar pra lugar nenhum. Mas há cada vez mais evidências de que o uso continuado de binaural beats pode diminuir ansiedade. Mesmo que sirva só para isso, já vai melhorar muito a qualidade de vida de muita gente.Danado vai ser se tentarem controlar a coisa, talvez porque beats como marijuana e LSD realmente tenham algum efeito (minimamente) parecido com as drogas. Aí teríamos drogas virtuais e vícios reais, o que não seria também nenhuma novidade... Mas o que vai rolar de beats nas redes P2P e em torrents vai saturar a internet de uma vez por todas. Sem falar na quantidade de spam com drogas de todos os tipos, legais (no bom sentido) ou não. Mas pelo menos não haverá balas perdidas na rede. Tomara.
Texto de Silvio Meira
http://g1.globo.com/Noticias/Colunas/0,,7421,00.html
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